Coloco o almoço mal disfarçando a tensão. Alcanço o relógio com o canto do olho. A força do braço ao deitar o prato vermelho na mesa entrega o peso da segunda. Ela pergunta se estamos atrasadas. Quase. Um segundo tombado após o outro, a mãe sem fome e de olhos fitos vigia em vão as horas e a menina, que demora para levar o talher à boca, gesticula histórias, cantarola intervalos, faz desenhos no ar com a ponta do dedo.
– Minhas três amigas imaginárias, que vivem no mundo invisível, estão no carro. Desde sábado.
Por que?
– Ah, mãe, tem um ar condicionado imaginário para elas. Estão no fresquinho. Mas vou levar as três para a escola, no bolso, e na volta elas tomam banho comigo. Tá?
Sim.
– Você não pode dar banho nelas, é claro, porque são imaginárias e você é uma mãe de verdade. Elas tomam banho sozinhas e invisíveis.
Está bem.
– Está nervosa, mamãe?
Não…
– Tá com cara de preocupada.
Minto mal, como de hábito: só pega outra batata, filha. Está tudo bem. Sua água, não esquece de beber.
– Na nova escola eu posso levar brinquedo todos os dias.
Que bom…?
– É. Hoje eu mesma fiz o que eu vou levar. É um teatro de papel. A menina e o monstro. Você pode recortar, por favor, eu vou colar e te mostro.
Filha, pelo adiantado da hora, loren ipsum etc.. Além do mais, loren ipsum lorem ipsum lorem ipsum etc., sabe?
Desarmada por um olhar transparente, interrompo o texto verdadeiramente falso e faço o que tem de ser feito: recorto os desenhos como ela pediu, espero a cola secar, escovamos os dentes, prendemos os cabelos, acertamos os passos. Dá tempo para uma foto?
(…)
Ela entra, quieta e agarrada ao importante teatrinho, o teatrinho que nos trouxe até aqui, juntas e à parte.
A menina desconhece o efeito de sua coragem em mim. Meu costumeiro “anda logo”, teria sido de uma brutalidade desproporcional diante de tanta delicadeza. E foi por um triz.
Sim, filha, às vezes eu sou trator. Me perdoa. Prefiro quando você passa por cima dos meus medos. Uma sensação maravilhosa, pelo tempo que durar. E me abriu o apetite. Vou comer.