Não sei gostar do café expresso. Com certa frequência eu o recuso sem remorso, porque foram anos a engolir muitas xícaras de rancor — ou a pessoa não sabe tirar ou não gosta ou deixa escorrer descontentamento. É uma coisa feia de ver, no primeiro gole minha cara se contorce e fica esverdeada e o fígado ressentido (mentira, não fica esverdeada, mas é um susto).
O pânico do café ruim só me faz admirar sempre e mais quem produz, seleciona, torra, mói e tira (bem).
Não é meu ponto final predileto. não dou sorte. às vezes até embarco no expresso a pretexto de prolongar a conversa boa — e embora não seja especialista no assunto, sei perceber que, quando bebo sem ficar feia, ele está bom e bem tirado.
Mas seria tão gracioso se os restaurantes fizessem a delicadeza de coar à mesa e encher de aroma o remate. uma amiga disse que já há alguns casos assim em são paulo, ainda não vi (só, é claro, em endereços sabidos como o coffee lab, que não é restaurante).
Declaro sem vergonha meu amor profundo à gentileza do café de boa qualidade coado e gostoso, e estou convencida de que, em geral, o resultado é positivo mais pela doação do que pela técnica — embora não faça mal algum usar água filtrada e sem açúcar e pó bom e novo, jamais beber café requentado nem descansado na garrafa e coar com calma.
O café das cápsulas, programado para dar certo, bebo e respeito. Mas há uma gostosura especial na espontaneidade, na dose a mais ou a menos de pó, no jeito de deitar a água, no dobrar das bordinhas do filtro de papel. E digo mais: minha mãe e meu pai adoçam a água descaradamente, o que a rigor seria um sacrilégio. Ainda assim, seu café, à base do pó-de-prateleira-do-mercado-sem-selinho-de-café-gurmê, é uma delícia.
Se eu o fizer, com o mesmo pó, a mesma água e a mesma medida, não ficará tão bom. Existe, no café coado, um café doado. É um certo encantamento que desafia a lógica.
Talvez, assim como o prato do outro é mais gostoso, o café feito pelo outro também seja. ah, os outros. adorável e inevitável inferno.
A verdade é que, pra mim, “espera, vou passar um cafezinho” é quase tão terapêutico quanto aqueles minutos em que, ninja, consigo chegar um pouquinho mais cedo na análise e tiro um cochilo instantâneo na ante-sala, a instantes de me largar nos braços de dr. Freud.
Doutor, divago.
Gostei demais. Também sou fã do cafezinho coado (o Brasil a Gosto servia, não sei se continua). E o cheiro de café passado na hora… Acho que só rivaliza com o cheiro de alho e cebola fritando no azeite. ;-)
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verdade! boa briga café e alho. ainda bem que nos enlevam em momentos diferentes. assim podemos aproveitar bem os dois. bjs gabi!
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Delícia de texto, Vivi, valeu por um cafezinho <3
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Lu, obrigada pela visita e pelo comentário. Veja, fico toda faceira, porque a gente sabe que um cafezinho não é pouco. Beijos.
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Me lembrou minha vó, com o cafe tirado naqueles coadores de pano antigos, e que ela serve com o requeijão caipira que ela mesmo faz. Isso vai comigo até o último dia da minha vida.
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Marcelo, ontem em uma aula que tratava de comida, leitura etc., a professora disse: “o que a gente come? memória. vivemos a procura de alguma coisa”. acho que sim. a gente come e bebe memórias como essa que você descreveu… obrigada pela visita.
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Perfeito…café coado é de fato café doado! Há essa (infernal, realmente) coisa humana, esse outro que vem junto com a xícara e que eleva o café a um patamar onde máquina nenhuma conseguirá atingir! Eis aí talvez um ponto de resistência à mecanização da vida: o aroma e o sabor inigualáveis de um café feito por mãos humanas, com todas as imperfeições, as nuances e a generosidade daquele que sabe servir, ofertar…E a sensação de que continuamos voltando pra velha casa. Abraço!
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verdade, Nathalia. café coado é um livro bom. livro mesmo, de cheirar, virar páginas e fazer carinho, ler e guardar papéis dentro. Obrigada pela visita, um abraço pra você também!
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